sábado, 18 de junho de 2011

Cinemática X Dinâmica

Relutei muito escrever aqui qualquer coisa sobre física, é bem verdade. Mas no final de contas realizei que sendo Físico, essa atitude de certa forma representava certa fuga de minha parte, certo receio. Desse modo, resolvi encarar o desafio, pois de fato, Física é das coisas na vida que mais amo. Sendo assim, não há porque não falar um pouco sobre como penso em Física.
Tentarei não ser chato em minhas considerações, promessa!
Uma coisa sempre me intrigou no ensino e no estudo de Física em geral. Por que ensinar primeiro a cinemática (do grego κινημα, movimento [1]) dos corpos e não a sua dinâmica? Fato é que os gregos da idade clássica já se ocupavam de problemas tais como: a causa geratriz e mantenedora do movimento (embora não coubesse a esse tempo a matematização de tais considerações filosóficas acerca do movimento dos corpos). Em particular, as idéias de Aristóteles acerca do movimento dos corpos perduraram por longo tempo, até que Galileu trouxesse luz ao problema do movimento do corpos em queda [2] e Newton investigasse o caráter matematico da lei que rege a queda dos corpos.
Parece-me que em nenhum momento (até a concepção dos Principia Mathematica) houve uma separação nítida entre o caráter filosófico de investigação do movimento por si próprio e das razões que o causam. De uma forma inocente eu gosto de pensar que os "pensadores do movimento" embora não dissessem explicitamente "esse objeto se move por ação de uma força" (coube a Newton esse papel) tinham em mente que um certo "objeto de ação" (que nos foge à observação) provoca o movimento, dá prosseguimento a ele e cessa-o. O que caracteriza tais "objetos de ação"? Alguns respostas foram dadas por Newton, mas outras ainda hoje são intrigantes. Por exemplo, tomemos a segunda Lei de Newton (em sua forma simplificada): F = ma. O lado direito nos diz a aceleração do objeto (a taxa de variação de velocidade do objeto) relaciona-se com a força sobre ele. Mas que força? Nesse tocante, pensando rapidamente sobre as forças que conhecemos, a quais casos ela se aplica efetivamente? Leia-se: existe uma classe relevante de forças conhecidas por nós? (De modo que se possa fazer o usufruto dessa lei de movimento ao máximo possível?) Fato é que não! Desse modo, para conhecer a massa do objeto (uma propriedade intrínseca sua) seria preciso antes conhecer a causa geral que provoca o seu movimento; o "objeto de ação" que o faz mover-se. Galileu de certo pensava nas massas e na quantidade de matéria dos objetos, não fosse assim não teria demonstrado (por contradição) igualdade de tempo de queda dos corpos no vácuo (uma vez que ele mesmo não conhecia experimentalmente o "vácuo", embora pudesse pensar sobre ele).
A grande questão é que mesmo para um rol pequeno de forças conhecidas já é possível conhecer um pedaço importante do mundo ao nosso redor e do universo de maneira geral. De certo que os pensadores pré-Newton pensavam (a seu modo) sobre as causas que geram o movimento. Assim também fazemos nós que ensinamos hoje essas disciplinas; a diferença é ignoramos conscientemente algo que está lá ao passo que antes isso não era essencialmente verdade. 
Sendo assim, a conclusão a que chego é: ensinamos cinemática antes de dinâmica para evitar algumas preocupações filosóficas (e também por questões pedagógicas e práticas). A questão é: isso é mesmo bom? 
Uma mente capaz de pensar sobre o movimento por si própria é também capaz de pensar as causas que o geraram.

[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinem%C3%A1tica (18/07/11)

[2] The Mechanical Universe, Chaps. 1-4, Calthec & The Annenberg/CPB Project (1985)

3 comentários:

Anônimo disse...

De fato, baiano, não sei a lógica de se ensinar cinemática primeiro e depois dinâmica. No ensino médio aprendemos assim, na faculdade idem; em todos os livros-texto de Física os assuntos estão nessa ordem. Talvez o conteúdo de cinemática seja mais simples de ser ensinado, ou seja, requer menos pré-requisitos dos alunos do que a dinâmica. Essa última pressupõe o conhecimento prévio de álgebra vetorial (outro tópico aprendido antes de F = ma). Acredito, contudo, que o ensino de ciências, sobretudo na Físca, deu-se de forma a compreender os assuntos de maneira aproximadamente cronológica. Assim, tal como você fala em seu texto, como Galileu apareceu antes de Newton, parece plausível estudarmos o primeiro ao invés do segundo.
Alexandre

Raphael Lage disse...

Querido Baiano,

Vc me desculpe se caso eu cometer qualquer deslize em meus comentários em relação a sua intenção no texto ou até mesmo quanto às terminologias e definições físicas entre cinemática e a dinâmica...

Primeiramente cara, também me intriga e fascina muito a inferência do primeiro motor móvel de Aristóteles a partir da sua teoria das quatro causas, e como ele e outros dos filósofos clássicos se lançaram à questão do movimento na sua tentativa de encontrar em explicar o devir do mundo. Acredito, que nesse contexto a não matematização das questões sobre o movimento era sobretudo, fruto da carga metafísica presente no conjunto de pensamentos que dava conta dos fenômenos naturais. Tais bases metafísicas, como a presente na teoria das quatro causas (Forma-Substância; Ato-Potência) não deviam por natureza, incluir em seu discurso quais eram os "objetos de ação" provocadores do movimento,pois na metafísica, como o nome fortuitamente já diz, estes já estão para além da natureza. Não de outra maneira, Aristóteles deduz "Deus" (o primeiro motor móvel) a partir da sua teoria do movimento.

Com Newton,o que ocorre no Principia Mathematica acredito eu, não é a separação nítida entre o caráter filosófico de investigação do movimento por si próprio e das razões que o causam, mas sim a substituição parcial de algumas bases metafísicas da teoria do movimento e a inserção de novas bases filosóficas que, na minha opinião são parte do início da filosofia positivista que: aceita ao homem como a medida de todas as coisas; se baseia na experimentação como forma legítima de acesso à realidade; e encontra no rigor método o caráter universal e transformador que expressa a dicotomia entre epistemologia e ciência.

Raphael Lage disse...

(Continuando..)

Acho que as ideias positivas ajudam Newton a desenvolver parte da visão dinamicista que posteriormente ajudaria em muito o desenvolvimento da física, apesar dele mesmo não ser capaz de abandonar por completo a visão mecanicista na qual um corpo isolado é de alguma forma colocado a agir somente por um outro ente isolado. Agora, a própria força embora materializada pela segunda lei,não é capaz de fazer com que Newton também encontre nas sutilezas metafísicas parte da explicação do seu discurso. Por exemplo, a coincidência entre a massa inercial e massa gravitacional não explicada por Newton, acaba o levando à duas situações bem diferentes:

-No caso da óptica geométrica, a extensão dos referenciais inerciais/gravitacionais no entendimento do princípio de fermat fora frutífera dando origem à teoria corpuscular da luz.

-No caso das transformações químicas, a extensão dos referenciais fora estéril. Por conta disso, Newton acreditava na existência de um determinado ente que seria capaz de exercer tamanha força sobre a matéria de modo a alterar sua capacidade resistiva ao movimento interno, ou seja sua massa (Sei que desde Newton até Einstein, Feynman, Hawking, Gell-Mann & cia, isso ficou bem mais claro, hehe...). Tal teoria o leva a acreditar em conceitos como a transmutação, a teoria da tria prima e da pedra filosofal.

Não por acaso, racionalistas positivos como Descartes e Newton foram assim como Aristóteles, indiferentes a abandonar a ideia da existência divina na explicação do devir do mundo. Porém, entendo que com Newton surgiu a capacidade universalizante da física em entender a multitude de eventos que contém toda informação sobre a natureza.

Pra finalizar, acho que a ordem curricular cinemática/dinâmica, é não só fruto do pragmatismo didático que cristaliza demasiado os fenômenos físicos, mas também resultado da palatabilidade do movimento frente ao ser que apreende (e que a ele é sensível) o conceito sobre o fenômeno, enquanto que a força, é tratada quase como um ente metafísico, que só pode ser percebido pelo movimento.

É meu amigo...infelizmente é assim que temos de ensinar ciência...Para grande dos alunos e professores há um quid pro quo nessa estrutura de ensino cristalizada...Para outros, como nós, não!!!

Um abraço cara...e pode deitar o catiguazão nas besteiras que eu falei!!!!

Raphael Lage